Devo humildemente reconhecê-lo, meu caro compatriota, fui sempre um poço de vaidade. Eu, eu, eu, eis o refrão da minha querida vida e que se ouvia em tudo quanto eu dizia. Nunca pude falar senão gabando-me, sobretudo se o fazia com esta ruidosa discrição cujo segredo era meu. É bem verdade que eu sempre vivi livre e poderoso. Simplesmente, sentia-me liberto em relação a todos pela excelente razão que me considerava sem igual. Sempre me julguei mais inteligente do que ninguém, disse-lhe eu, mas também mais sensível e mais destro, atirador de escol, volante inigualável, e melhor amante. Mesmo em domínios onde me era fácil verificar a minha inferioridade, como o ténis, por exemplo, onde eu era apenas um parceiro razoável, era-me difícil não acreditar que, se tivesse tempo para me treinar, eu bateria as primeiras categorias: Não me reconhecia senão superioridade, o que explicava a minha benevolência e a minha serenidade. Quando me ocupava de outrem, era pura condescendência, em plena liberdade, e todo o mérito revertia em meu favor: eu subia um degrau no amor a mim mesmo.
Com algumas outras verdades, descobri a pouco e pouco estas evidências, durante o período que se seguiu à noite de que lhe falei. Não imediatamente, não, nem com grande nitidez. Tive, antes de mais, de recuperar a memória. Gradualmente, fui vendo mais claro, aprendi um pouco do que sabia. Até ali, tinha sido sempre ajudado por uma espantosa faculdade de esquecimento. Esquecia tudo e em primeiro lugar as minhas resoluções. No fundo, nada contava. Guerra, suicídio, amor, miséria, prestava-lhes atenção, é certo, quando as circunstâncias a isso me obrigavam, mas de uma maneira cortês e superficial. Por vezes, fazia menção de me interessar por uma causa estranha à minha vida mais quotidiana. No fundo, porém, eu não participava nela, salvo, é certo, quando a minha liberdade fosse contrariada. Como dizer-lhe? Tudo isso resvalava.
-A Queda, Albert Camus
3 comentários:
Tu resvalas...resvalas bem...por assim dizer...
Oportuníssimo! Como assentam bem estas palavras... seja em quem for que enfie a carapuça :)!
Muito boa escolha de autor e de texto!
a ilusão da auto estima.
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